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Alguém escuta?

Atualizado: 14 de jun. de 2022


Nos raros momentos em que estou sozinha, escuto uma mulher chorando baixinho nesta casa.


Tu não escuta?


Quando tu não está aqui eu a escuto com mais clareza do que nunca. Eu ligo a tevê pra não ouvir o lamento.


Não sei o que ela diz, mas às vezes sussurra tão alto e eu quase consigo decifrar. De vez em quando o cachorro da vizinha late muito e os nossos começam junto uma sinfonia: escuto ao fundo uma lamúria. Imagino a cena dela: agachada no chão, chorando num cantinho da nossa casa; talvez naquela parte que a gente guardou a impressora estragada.


Será que estou louca?


Também não sei o que fazer com a mulher. Eu só queria que alguém a ajudasse.


Meu deus, tu não escuta?


É claro que eu nunca tentei ajudá-la, afinal, como eu já te disse, tenho medo que habite nossa casa para sempre com esse choro. E tem um chorinho tão amuado, sabe?


Logo eu, tão ateia, acreditando em alma penada. Um choro meio de socorro, mas um socorro de uma meia suja que tem de ser lavada; a meia consegue viver com a sujeira, mas vai feder e precisa de ajuda para parar de feder.


Como pode tu não escutar?


Quando tomo banho, a tristeza dela desce pelo chuveiro e escorre pelos ralos. É como se eu estivesse tomando um banho de lágrimas. Chora tanto, meu deus, chora. SóComo eu queria que tu ouvisse essa mulher.


Eu não posso ajudar. Eu nem a conheço. Não sou psicóloga.


Onde será que ela tá?


Ela tá no banheiro, ou ela tá no canto da impressora velha. Aliás, que nojo dessa impressora ocupando o cantinho. Foi a nossa pior compra. Eu sabia que promoção de impressora era furada.


É verdade, uma mulher inteira não caberia no cantinho da impressora. Talvez os caquinhos dela estejam por ali. Por ali, só algumas gotinhas de sua dor.


Eu vou ao banheiro procurar por ela e acabar com isso. Tem certeza de que tu não ouve?


Nesse momento eu parei de falar e caminhei até o banheiro para procurá-la. Ele continuou na sala, procurando algum telefone de um médico.


Fui ao banheiro, abri o box de cortinas e… nada dela.

Varri os cabelos do ralo, abri-o: mais um monte de cabelos e uma barata, nada da mulher.


Dentro do vaso: só o amarelo do xixi que ele não puxou descarga.


Na pia: o ralo.


No espelho: ela.


Este texto é de autoria de Izadora Troian.


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